Semana Santa em Piquete: no Domingo de Ramos a Igreja Católica inicia a Semana Santa, quando rememora a Paixão e a Ressurreição de Cristo.
Quaresma e Semana Santa na Piquete de ontem
Autor: Carlos Vieira Soares.
Metade da noite de terça-feira do Carnaval para Quarta-feira de cinzas. A folia carnavalesca encerra nessa hora. Nem um minuto a mais, pois, nesse momento, terminado o entrudo (termo usado para designar o Carnaval antigo), começava o período de penitência. Nada de festa, de músicas alegres, de bailes, de caçadas e ruídos excessivos.
O gramofone e, mais tarde, a vitrola de corda, eram recobertos por um pano preto, assim como nas igrejas as imagens eram veladas por um pano roxo.
Quarenta dias mudos. As espingardas, depois de devidamente azeitadas, eram dependuradas de boca para baixo, no fumeiro, com rolhas de palha de milho tapando-lhes os canos para evitar entrada de marimbondos. Que gaviões acabassem com os pintos no terreiro! Era a Quaresma, tempo de respeito, de abstinência, de luto e de dor, e qualquer coisa que transgredisse essa ordem era tida com pecado mortal.
Nessa quarta-feira de cinzas, à noite, depois da Via Sacra, havia a cerimônia da imposição das cinzas. O sacerdote, ao fazer uma cruz de cinza na testa dos fiéis, cinzas que eram o produto queimado das palmas do Domingo de Ramos do ano anterior, dizia: “Memento, homo, quia pulvis es, et in pulverem reverteris”, ou seja, “Lembra-te, homem, que é pó e ao pó há de voltar”.
Daí em diante, em todas as quartas, sextas e domingos havia Via Sacra na Matriz, concorridíssimas…
Às quartas e sextas, jejum e abstinência, penitências necessárias em preparação às comemorações da Semana Santa.
Domingo de Ramos, dia em que se comemora a entrada triunfante de Jesus em Jerusalém. A igreja repleta de fiéis, pela manhã. O oficiante ordena que todos se retirem para que se possa organizar a Procissão de Ramos. O coro canta os hinos próprios: “Glória, laus, et honor, tibi sit Rex Christe Redémptor”: “Glória e honra ao Cristo Rei Clemente. Glória a Ti, filho de Davi”.
À tarde, em nossa terra, havia a procissão do Encontro. Em outros lugares, essa procissão é realizada na terça-feira. Aqui, não se sabe o porquê, ela é no Domingo de Ramos.
Lá da igreja da Vila São José sai a imagem de Nossa Senhora das Dores; da Matriz sai a imagem do Senhor dos Passos carregando a cruz. Encontram-se na Praça da Cadeia. O orador sacro, de um púlpito, fala sobre o significado da cerimônia. O povo contrito acompanha as palavras com respeito e devoção. Segunda, terça e quarta-feira, Via Sacra com o templo repleto: “A morrer crucificado, teu Jesus é condenado, por teus crimes, pecador”. O povo ajoelha-se e levanta-se a cada estação.
Quinta-feira Santa. Pela manhã, missa festiva pela instituição da Eucaristia. O coro só pode cantar em latim. Comunhão geral em comemoração à Páscoa do Senhor.
À noite, a tocante cerimônia do Lava-pés: doze meninos de apóstolos, descalços, deixam que o ministro, representando o Cristo, lhes lave os pés, após o que recebem uma pequena garrafa de vinho e um pão, simbolizando o sangue e o corpo do Salvador, enquanto o coro canta o diálogo de Cristo com Pedro: “Senhor, Tu me lavas os pés? – Si non lavero tíbi pedes, non habebis partem mecum”, isto é: “Se não deixares lavar teus pés, não terás parte comigo”. O coro continua: “Eu vos dou um novo mandamento: que vos ameis uns aos outros assim como Eu vos amei”. Após essa cerimônia, a procissão interna do Santíssimo, que depois era encerrado numa urna fora do adro principal da igreja e adorado toda a noite pelos fiéis, que faziam escala de hora em hora.
Teminava a vigília pela manhã de sexta-feira, com missa dos Pré-Santificados. Às 15h, Via Sacra Solene, a cerimônia da descida da cruz e o início do beijamento.
Por essa hora, a cidade estava de luto completo. As fábricas paralisadas. As locomotivas com os apitos amarrados e o povo com ar solene, cabisbaixo, não ousando levantar a voz.
As barraquinhas do “seu” João Roque e de D. Laura Amorim só vendiam bolinhos de bacalhau e pastéis de palmito. O mata-bicho estava proibido. Numa só refeição obrigada pelo jejum, a abstinência de carne era rigorosamente observada. Só animais de sangue frio: peixe ou camarão. Também eram servidos paçoca de amendoim e pinhão cozido, preparados na véspera, já que as famílias mais ortodoxas apagavam seus fogões pelo meio-dia de quinta-feira, quando se encerrava qualquer atividade de trabalho.
A procissão do Senhor Morto era o máximo em espetáculo de fé e respeito. A música, a mais apropriada possível: só marchas fúnebres, nas quais a banda procurava esmerar-se. Sobressaíam as matracas de madeira.
Encerrada a procissão, em que eram representadas as principais figuras da tragédia do Gólgota, continuava o beijamento. À par dessas solenidades oficiais da Igreja havia as romarias ao Santo Cruzeiro. Durante o dia e a noite de sexta-feira, famílias inteiras subiam o morro, cada uma carregando, por penitência, pedras apanhadas na rua.
Os fazedores do judas já se empenhavam na confecção do “Traidor”, cada qual procurando imitar uma pessoa ou autoridade, numa crítica muda mas sobremaneira autêntica, que terminava ao meio-dia de sábado, quando, após a leitura do testamento do morto, era o mesmo malhado, rasgado aos pedações e queimado pela turba de moleques.
Pela manhã do Sábado de Aleluia, na igreja havia várias cerimônias. De início era a benção do Fogo Novo. Apagadas todas as lâmpadas do templo, o oficiante iria acender à porta da igreja, com fogo natural, isso é, com um pouco de brasa assoprada até fazer uma pequena chama, um círio de cera pura, e com essa pequena vela seriam acesas todas as velas do templo, numa cerimônia tocante.
Em seguida, vinha a benção da água e a Ladainha de todos os Santos, e a Semana Santa terminava com a missa da Aleluia, ao meio-dia. Nessa hora, era descerrado o pano que encobria o altar. Os sinos repicava e os foguetes estouravam, enquanto o coro entoava o solene “Glória a Deus nas alturas”.
Lá fora, as máquinas apitavam e a molecada procurava o judas, cada grupo tendo em vista, de antemão, qual lhe deveria caber para a malhação de praxe.
Após a leitura do testamento, a malhação e o estouro das bombas colocadas em suas vísceras de palha, pano e capim, os meninos saía, aos magotes, tirando a aleluia.
Iam em grupos, de venda em venda, gritando: “Aleluia, aleluia! Peixe no prato e farinha na cuia!”, pedindo balas, pinhões e dinheiro. Quando um negociante mais liberal jogava um punhado de moedas, formava-se um bolo de moleques, cada qual procurando apanhar maior número de níqueis, e quase sempre havia escoriações de caráter grave. Outras vezes, quando se encontravam grupos antipatizados por rixas antigas ou por bairrismo, sobravam sopapos e pontapés.
Terminada a Aleluia de rua, os comentários: “Lá no seu Joaquim Serafim, eu peguei seiscentos réis, que vão dar pra ir ao cinema duas vezes”. Outro: “Eu só peguei pinhão e bala, além de uma topda que me escalavrou o dedão”.
Às 19 horas, na Matriz, a cerimônia da Coroação de Nossa Senhora, por um grupo de meninas vestidas de anjos, enquanto o coro entoava o “Regina Coeli”. Depois, a benção do Santíssimo e os cumprimentos pela Páscoa e ressurreição do Senhor.
E as festas iam até a madrugada do Domingo da Ressurreição, quando, às 5h, saía a Procissão do Ressuscitado. A Banda de Música, já então executando marcas e obrados alegres, e o povo, com que ressurgido para uma nova fase de vida, mostrando-se feliz e com ares festivos.
Carlos Vieira Soares
Crônica publicada originalmente há 25 anos, na edição 03 Informativo O ESTAFETA, de Abril de 1997. Posteriormente, em 2002, fez parte da coletânea de crônicas publicadas no livro “Rememorando…”.
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