O plangente canto da Verônica
Sexta-feira Santa: a matraca assinala a saída da procissão, na frente um crucifixo ladeado de luminárias e castiçais, logo atrás uma grande massa de fiéis, um esquife todo ornamentado com a imagem do Senhor morto. Sobre o esquife, um dossel roxo. Assim que o esquife do Senhor chega à rua, à porta da matriz aparecem quatro vultos de preto, todas com véu e três coroadas de espinhos. A quarta mulher sobe em uma banqueta e começa um canto triste desenrolando um pedaço de pano onde está estampado o rosto de Jesus. Findo o canto, a procissão inicia seu cortejo. Em alguns pontos a mulher de preto volta a cantar, tendo por coro os vultos coroados de espinhos, e por fim, antes que a imagem entre na igreja, faz sua última apresentação e se recolhe; é a Verônica que, acompanhada das Marias Beus, desaparece no interior da igreja.
Mas quem é esta personagem que povoa a imaginação? O canto da Verônica vem por muitos anos fazendo parte da nossa tradição. Sabe-se que nos Evangelhos não aparece mencionada a Verônica. Entre as várias mulheres que acompanhavam Jesus, o nome dela não é referido. Pensa-se, por isso, que o nome possa exprimir, sobretudo, o que a mulher fez. Segundo a tradição, no caminho para o Calvário, uma mulher passou por entre os soldados que escoltavam Jesus e com um véu enxugou-lhe o suor e o sangue do rosto. Aquele rosto ficou gravado no véu: um reflexo fiel, uma verdadeira imagem.
O canto triste da Verônica, na Sexta-Feira da Paixão, está presente na nossa região, onde criou forças e atravessou séculos de existência. Cantado em latim o verseto 12 de Lamentações de Jeremias, esta curiosa personagem vestida de preto desenrola o sudário com o rosto de Jesus em frente ao esquife do Senhor na Sexta-Feira da Paixão: “Ó vós omnes, qui transitis per viam / Attendi-te et videte / Si est dolor, similis / Sicut dolor meus”.
Seu curto e lamentoso cântico somente pode ser apreciado neste dia e sua intérprete orgulha-se de poder fazê-lo, chegando a exercer por décadas este honroso ofício.
De acordo com o pesquisador salesiano Pe. José Geraldo de Souza, em seu estudo intitulado “O Plangente Canto da Verônica no Vale do Paraíba”, os atos Apócrifos de Pilatos designavam este pano por Berônica, Bernice ou Berenice. Desta forma, originou-se “Verônica”, palavra derivada de “Vera Eicón”, ou seja, “Verdadeira Imagem”, sendo este termo de uso bizantino a partir da Idade Média. Portanto, o nome Verônica foi também atribuído, por extensão, à mulher que acompanhou o sofrimento de Jesus Cristo.
Na Semana Santa de 2000, o Pe. José Geraldo de Souza aos 87 anos esteve em Piquete pesquisando. Com doutorado em Roma pelo Instituto Pontifício de Música Sacra, pesquisador de nosso folclore, por anos estudou os vários aspectos desta tradição nas procissões de Sexta-Feira da Paixão em diversas cidades da região. Na ocasião ficou hospedado no Hotel Brasil, na Praça da Bandeira. Veio para conhecer, analisar e detalhar o canto de Maria Beraldo Castanho, a Verônica que por mais de vinte e cinco anos emprestou sua voz para a personagem. Para Beraldo, era um privilégio interpretar o Canto da Verônica. Era uma oportunidade de mostrar sua devoção e a beleza de seu canto nas apresentações. Dizia ser este um momento muito importante e que cantava com sentimento. Na ocasião, Beraldo já se preocupava com a continuidade desta tradição. Encontrou em Jovanir Andreia Santos quem a substituísse à altura. Em 2002 cantou pela última vez.
Na Paróquia de São Miguel, em Piquete, tivemos, ao longo dos anos, as seguintes Verônicas: Zezé do Carlos Vieira, Adília Guimarães, Aidê Encarnação, Lídia Paulino, Heloísa Soares, Lavínia Oliveira, Doquinha, Clélia D’Amico, Maria Beraldo Castanho e Jovanir Andreia Santos.
Segundo o padre José Geraldo, Verônica é considerada a patrona dos fotógrafos, pois conseguiu moldar em uma chapa (lenço de linho) os traços fisionômicos de Jesus. A Verônica representa a compaixão, a piedade, a comoção, o amor para como o próximo.
Texto de Antônio Carlos Monteiro Chaves, publicado originalmente na edição 171 do informativo O ESTAFETA, de abril de 2011.
Para ouvir Jovanir Andreia Santos entoando o plangente canto da Verônica: https://www.youtube.com/watch?v=OfJjYcO_Qmo
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