No dia 7 de setembro de 1944, às 19h30min, aconteceu a inauguração do Cine Estrela do Norte. Este foi um acontecimento memorável na história de Piquete. Veio no bojo de outras grandes obras sociais promovidas pela Fábrica Presidente Vargas, voltadas para o operariado: Vila Duque de Caxias, Parque Zoológico Filisbina Rosa e a Escola Industrial Feminina, mais tarde Escola Normal. A inauguração do Cine Estrela concorreu para a mudança do centro social de Piquete, que se transferiu das proximidades do Cine Glória para as da Praça da Bandeira.
O Cine Estrela norteou a criação da Praça Duque de Caxias, o Ginásio de Esporte e Grêmio Duque de Caxias, além do Pórtico, que delimitava a área da Fábrica. Esse conjunto harmonioso tornou-se referência arquitetônica da cidade, que experimentava um surto de progresso àquela época.
O prédio do novo cinema foi adaptado e ampliado a partir de um imenso galpão construído como depósito para abrigar o maquinário da planta fabril de base dupla, inaugurada em 8 de dezembro de 1942. Com o espaço desocupado, o major José Pompeu Monte, então chefe da Divisão de Obras da Fábrica, voltado sempre para as questões sociais do operariado, idealizou e construiu o cinema e, anexo, o Grêmio General Carneiro, que até então se encontravam instalados provisoriamente à rua Major Carlos Ribeiro.
Em estilo neocolonial, com arcadas e passadiço, o Cine Estrela, por mais de quatro décadas, proporcionou entretenimento, cultura e informação aos piquetenses. Ditou moda e comportamento, copiados via Hollywood. Ir ao cinema significava refinar o gosto e se enriquecer culturalmente. Nas telas do Cine Estrela as estreias nacionais eram projetadas antecipando todas as salas valeparaibanas. Isso graças ao Cassino dos Oficiais, na Vila da Estrela, para onde vinham os lançamentos diretamente do Rio de Janeiro. Esses filmes eram passados simultaneamente no cinema dos operários.
A tão esperada abertura da nova sala de espetáculos aconteceu numa quinta-feira, feriado nacional pelo Dia da Pátria. No programa de estreia a direção do “Círculo de Oficiais e Assemelhados da FPV” participava ao público a inauguração daquela casa de diversões e agradecia à “vontade inabalável e crescente do estimado diretor coronel Waldemar Brito de Aquino que tudo tem feito para favorecer a classe operária de Piquete”. Com a sala repleta de convidados, breves palavras foram pronunciadas pelo capitão Ário Rodrigues Ribas, diretor do Círculo de Oficiais e Assemelhados. Logo após, o coronel Aquino, diretor da Fábrica, também discursou, dando por inaugurado o novo cinema. Em seguida, numa ampla tela, com acústica especial e confortáveis poltronas, num ambiente escurecido por pesadas cortinas de cor púrpura que cobriam as janelas do prédio, apagaram-se as luzes e foi iniciada a sessão inaugural. A programação cinematográfica constou de um noticiário nacional, seguido do “Voz do Mundo – últimas notícias da Europa em Guerra”. Finalmente, o tão esperado filme da noite – “Damasco”, “gigantesca superprodução da RKO, com o desempenho do querido astro George Sanders”.
Ao término da esperada sessão, aplausos ininterruptos que demonstravam o contentamento da plateia, que, empolgada, não queria deixar o espaço. Haveria, porém, às 21h45min nova sessão, que já estava com ingressos esgotados. A emoção dos que deixavam a sala só aumentava a ansiedade dos que esperavam pela segunda sessão…
Nos dois dias seguintes, a programação constava de “Horas de Tormento”, com Betty Davis. No domingo, “Marrocos”, com “o aplaudido” Gary Cooper. Era o início de um longo período de muitos acontecimentos e diversão para os piquetenses.
Antônio Carlos Monteiro Chaves
Publicado no informativo O ESTAFETA, edição 212, de Setembro de 2014.
Ir ao cinema em Piquete era estar ligado aos acontecimentos, receber informações, comprazer-se com obras de arte, degustar prazeres visuais, assimilar modelos e observar que o sistema de vida norte-americano (após 1945, final da II Guerra Mundial) era o fim almejado.
Vestia-se, penteava-se, agia-se, pensava-se segundo esse famoso slogan: “o american way-of-life” (sistema americano de vida). Com ele, entre outras coisas, veio o chiclete, e, de lambuja, Carmem Miranda, como baiana estilizada, com um samba com sotaque norte-americano, no qual se identificavam vários ritmos latino-americanos, nenhum puro, e todos subliminarmente “arranjados” para o gosto e os interesses do Tio Sam.
E Carmem Miranda incorporou o Zé Carioca, o Bando da Lua e o que era preciso e aprovado pelos estúdios hollywoodianos. Fez fortuna e passou a integrar o “star system” provocando orgulhos pátrios e invejas arrasadoras. Aguentou-se até o final, fincando pé entre as mansões de Beverly Hills, o bairro estrelado de Los Angeles. Nos cinemas piquetenses ela pontificava ao lado dos grandes nomes arrancando suspiros, lágrimas, sorrisos, gargalhadas, aceitações, conivências, repúdios e toda a sorte dos humores humanos ao se verem representados em imitação da vida. O real mitificado tornou-se simulacro de si mesmo.
Às vezes, com muito brilho, coreografias e encenações estereotipadas montadas em cenários de cartão, simuladores dos originais para gáudio de todos. Depois, a tecnologia levou às locações reais, e, ao tornar tudo muito próximo do real, se aperfeiçoou tanto, que até hoje dizem os maravilhados com as técnicas televisivas: Parece um cinema!
Mas o salto de qualidade esvaziou os velhos estúdios de sua magia perturbadora.
A emoção transferiu-se, nas grandes corporações multinacionalizadas, para os efeitos especiais, nos quais o interesse já não é criar um modo de vida exemplificado, didático e pretensamente virtuoso, mas uma diversão fugaz que se encerra nos extensos blocos dos créditos finais, em geral não atendidos pelos impacientes espectadores. E estes, muitas vezes, perdem um arremate de enfeite ou de significação; a menos que estejam alertados para a espera prolongada da trilha musical estendida em mais de uma faixa musical.
Naqueles tempos do cinema em Piquete (década de 1940), assistia-se ao filme em partes interrompidas, com tempo para o bobinamento da máquina de projeção. As partes circulavam entre o cinema operário e o Cassino dos Oficiais (em maiúsculas, como se fazia na época, pelas exigências hierárquicas). Uma charretinha puxada por uma mula incumbia-se do transporte das ditas partes. Demoras havia. E se fossem trocadas? Um espanto e um clamor geral. Interrupções por chuvas tempestuosas, falta de energia, e… empacamentos da mulinha, que não aceitava mudanças no itinerário, mesmo se esse tivesse algum tipo de impedimento: reforma de ponte, perigos da via carroçável ou desatinos caprichosos que não são apenas da humana forma.
Na plateia do cinema operário, impacientava-se o povo, mas discutiam-se as sequências e apostava-se nos desenlaces finais. Alguma ida ao banheiro do bar e padaria ao lado. Talvez desse tempo para um cafezinho requentado ou um “golinho” confortante. No Cassino, os intervalos eram regados a boas bebidas e regalos comestíveis bem preparados e bem servidos. O café sempre novo. Tudo servido com requintes para um público bem vestido e bem apresentado. Falava-se baixo, segundo o bom tom e a etiqueta de que os oficiais graduados eram possuidores desde sua gloriosa Academia. Argumentava-se com base em intelectualidades. Os filmes eram previamente escolhidos a dedo. Assistia-se ao que de melhor houvesse no mercado cinematográfico, antecipando-se a todas as salas valeparaibanas de exibição. Mas, também era necessário conceder algumas vantagens ao operariado: uma sessão grátis toda semana, frequência liberada aos aposentados, em todos os dias da semana e a presença de filmes de agrado popular: os religiosos (católicos) em geral, a Paixão de Cristo, na Semana Santa, e os de Mazzaropi, sempre que os houvesse disponíveis. Afinal, ninguém é de ferro. E para as crianças, as séries (a maravilhosa, de Flash Gordon) e os “cowboys”: torcia-se sempre pelo branco munido de arma de fogo contra os vilões mal-encarados e os índios estereotipados nos cabelos longos presos, cujas armas eram as machadinhas. Até que… Bem, tudo mudou.
A propósito, foi prazeroso ler uma crônica publicada por Arthur Xexéo no O Globo, sobre as sessões de cinema no Cassino, sob a denominação de A Estrela de Piquete no sopé da Mantiqueira, evocadas por ele, filho do então major Xexéo servindo na Fábrica Presidente Vargas, nos finais da década de 1950 e início de 1960. Nela, a evidência do prazer em ir ao cinema fica, sobremodo, patente. Acompanhada das memórias sensíveis representadas no imaginário do cronista.
Dóli de Castro Ferreira
Publicado no informativo O ESTAFETA, edição 99, de Abril de 2005.
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