Passava da uma hora da tarde do dia 15 de setembro de 1906, quando, na Estação Ferroviária Rodrigues Alves atracou a Locomotiva Floriano Peixoto, conduzida pelo maquinista Lorival Pinto Linhares. Especialmente enviado da Central do Brasil, ele dirigia uma composição formada por um carro descoberto e dois carros de primeira classe, conduzindo o então Ministro da Guerra, Marechal Francisco de Paula Argollo, e grande número de convidados. A comitiva vinha inaugurar o ramal férreo Lorena – Bemfica, a Estação Ferroviária Rodrigues Alves e outras obras militares destinadas à fábrica de pólvora sem fumaça em construção no município.
O trem chegou como símbolo de modernidade, equipado para significar progresso e industrialização.
O evento foi uma apoteose. A estação, enfeitada, tinha a plataforma repleta de autoridades civis, militares e parcela significativa da população. Essa inauguração foi a primeira de uma série de obras do Exército que culminariam com o 15 de março de 1909 e mudariam para sempre a história de Piquete. Os principais jornais da capital federal e de São Paulo, além de representantes da imprensa valeparaibana, deram ampla cobertura a essas festividades. A Revista da Semana, do Rio de Janeiro, registrou com imagens a inauguração.
Construída à margem direita do Ribeirão Piquete, a Estação Ferroviária Rodrigues Alves chamava a atenção pela simplicidade: dois pavimentos de alvenaria de tijolo, cobertura de telhas planas, forros de madeira, soalho no pavimento superior e ladrilho no inferior, alpendre de folha de zinco ondulado, pintura em obras de esquadrias e forros. Os lambrequins que a adornavam davam-lhe um toque pitoresco. Em harmonia com a paisagem, a Estação Ferroviária Rodrigues Alves, a partir de sua inauguração, tornou-se símbolo das obras do Exército, em Piquete, e catalisadora das aspirações de inúmeros passageiros que por ela chegavam. Um cartão-postal impresso, quando de sua inauguração, registrou-a para a posteridade. Passados 100 anos daquele 15 de setembro, ao olharmos para essa fotografia, somos convidados a embarcar para uma viagem no trem da memória e resgatar um pouco daqueles tempos congelados nessa imagem.
A fotografia gravada registra no primeiro plano, de maneira clara e direta, a Estação Rodrigues Alves, sua plataforma de embarque e os trilhos do ramal ferroviário. Ao fundo, a propriedade do Coronel José Mariano, o Hotel das Palmeiras, palco de grandes acontecimentos políticos e sociais da Vila Vieira do Piquete, além do casario que se distribuía por entre as encostas e às margens da principal rua, a Américo Brasiliense, paralela ao ribeirão. Muitos, talvez alheios à importância dessa imagem, ou cansados pela pressão visual do cotidiano, não conseguirão fluir a beleza documental que nela se encerra. Uma leitura mais acurada mostra a pluralidade nela contida, pela multiplicidade dos valores sociais e culturais. Mais do que nos voltarmos para o passado, tentemos olhar, como no passado, com os olhos do fotógrafo.
Passear atento por esse cartão-postal possibilita soltar a imaginação, completando a visualização das imagens com a variedade dos conhecimentos que possuímos a seu respeito. Esse documento iconográfico raro nos permite transcender o próprio objetivo da sua criação. Diante dessa imagem, o destinatário sonha, emocionando-se, tornando-se partícipe da ventura ou aventura de quem a expede. Que cada observador seja, num recurso memorialístico, testemunha desse momento de nossa história guardado há cento e dezesseis anos junto a essa imagem.
Antônio Carlos Monteiro Chaves
Publicado no informativo O ESTAFETA, edição 130, de Setembro de 2007.
Aos ex-maquinistas do trenzinho dos operários, Luiz Vilela e Elias Xavier
Há 100 anos, no dia 15 de setembro de 1906, o Marechal Argollo, Ministro da Guerra, inaugurava, aqui em Piquete, o Ramal Férreo Lorena-Bemfica e a Estação Rodrigues Alves.
Dois jornais da cidade do Rio de Janeiro – “O Paiz” e o “Correio da Manhã” – fizeram a cobertura do evento. Segundo eles, precisamente às 13 horas e 15 minutos, um trem entrava, pela primeira vez, na estação da acanhada e pacata Vila Vieira do Piquete.
Silvos da locomotiva. Profusão de foguetes, foguetes-de-vara acesos com tições. Alvoroço de pessoas. Vivas à República, ao Exército e ao Marechal Argollo. O Hino Nacional e marchas cívicas executados pelas bandas do 12º Batalhão de Infantaria e do Colégio Salesiano São Joaquim, de Lorena.
A presença de autoridades – o Intendente Municipal, Senhor José Inocêncio Alvim Bittencourt, o Coronel José Mariano Ribeiro da Silva, o Coronel Luiz Relvas, o Barão da Bocaina… Pessoas de destaque e grande número de senhoras. Todos bem trajados, com elegância; afinal, era dia de festa, de acontecimento inusitado que seria sempre rememorado.
Grande entusiasmo da população. As principais ruas da Vila ornamentadas com palmeiras. Palmeiras também ao longo do ramal férreo. Próximo à estação, enfeitado com flores, um arco triunfal, de bambus. Bandeiras, muitas bandeiras. Fotografias, já esmaecidas e tisnadas, nos remetem àquele dia festivo, e, no embalo da imaginação, recriamos cenas e pessoas.
O Hotel das Palmeiras, residência do Coronel José Mariano, foi também palco de homenagens às autoridades. Meninas de branco – pétalas de rosas sobre os visitantes. Aclamações e vivas. Discursos. Champagne e farta mesa de doces.
A seguir, todos novamente na Estação Rodrigues Alves – inauguração oficial do ramal férreo, leitura da respectiva ata e discurso proferido pelo Tenente-coronel Teixeira Maia.
E o povo de Piquete passou a se orgulhar da sua estação e do seu trem, carinhosamente denominado “trenzinho dos operários”.
Durante 71 anos ele percorreu os caminhos de nossa história e deixou um rastro de lembranças. Esteve sempre vinculado à nossa paisagem social, a pessoas, fatos e momentos marcantes: as romarias a Aparecida, a venerando figura do Padre Juca, Nossa Senhora entronizada num andor todo de flores e filó, sinos e foguetes no silêncio das madrugadas; as festas natalinas, o trenzinho chegando de Lorena, um papai-noel na cara da locomotiva, crianças sonhando com brinquedos e guloseimas; operários cansados e sonolentos, as frontes ungidas de sacrifício…
Soube, por alguns familiares, que em 1932, conduziu nossa gente para São Paulo, entregue a cidade às mãos das tropas constitucionalistas. Malas e trouxas feitas às pressas. Três dias de viagem crivada de incertezas e cansaço. Vômito e diarreia de crianças, carência de comida e leite. Desconforto. Lágrimas. Saudade da terrinha natal.
Certa vez, eu menino, não me recordo do ano, vi o trenzinho apinhado de pessoas importantes. Um corre-corre para a estação. Getúlio Vargas em visita à Fábrica de Pólvora. Ao longo da via férrea, adultos e crianças acenavam. E o Presidente passava distribuindo sorrisos, orgulhoso da dignidade de chefe supremo da nação.
Durante muitos anos foi o trenzinho nosso único meio de transporte. Pela manhã, uma viagem até Lorena, várias paradas em duas estaçõezinhas – Coronel Barreiros e Angelina – para embarque de pessoas e do leite das fazendas para a Usina de Laticínios. À tarde, o retorno – as notícias dos jornais, os segredos das correspondências, a curiosidade dos visitantes e a alegria dos que vinham rever amigos e parentes.
Nos quintais, meninos brincavam com trenzinhos de caixas-de-fósforos, faziam-se maquinistas e imitavam os apitos da maria-fumaça.
O trajeto do trem até o Portão da Limeira, portal da Fábrica de Pólvora, tinha sabor de beleza – pequenas casas coloridas à beira-linha, quintais decorados com bananeiras, o esverdinhado dos morros, os ribeirões sempre limpos, crianças em adeuses e gritos estrangulados pelo barulho da locomotiva, cruzes de madeira rodeadas de imagens, enfeitadas com papel crepom.
Infelizmente, um dia, o querido trenzinho deixou de circular. Arrancaram os trilhos e deixaram desabar as estaçõezinhas onde ele costumava parar. Hoje, tudo não passa de fotografias.
Felizmente, a Estação Rodrigues Alves que, durante anos ao abandono, foi vítima de intempéries e pichações, ninho de ratos e morcegos, está agora reformada, salva da destruição.
E o trenzinho, que se fez saudade, correrá sempre na nossa geografia interior; poeticamente, ressuscitaremos na memória os que ajudaram a construir esta cidade e deixaram marcas indeléveis em cada um de nós.
Chico Máximo
Publicado no informativo O ESTAFETA, edição 130, de Setembro de 2006.
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