No período em que todos esperam o Carnaval, vale a pela reler “Nos pastos da folia“, crônica de Chico Máximo, que esteve à frente da Secretaria Executiva da Fundação Christiano Rosa desde sua instituição, em 1997.
“Nos pastos da folia” foi publicada originalmente em fevereiro de 1999 no informativo O ESTAFETA e, em 2005, eternizada no livro “Crônicas de Cidadezinhas”.
Nos pastos da Folia
Todos os anos os bois-de-carnaval invadem nossas ruas e praças. Neste ano de 1999 o número aumentou consideravelmente; daí um meu amigo dizer-me: “Acho que não vai ter pasto para tantos bois”.
Mal a tarde agoniza, eles aparecem – aos pares, em bandos ou solitários. São a mais viva e antiga manifestação folclórica carnavalesca. Podem rarear os blocos ou os foliões fantasiados, mas eles continuam desafiando o tempo e os modismos.
Para confeccioná-los gasta-se pouco, principalmente se as crianças se unem e cada uma oferece sua quota de colaboração. O trabalho em grupo, além do prazer lúdico, intensifica o espírito comunitário.
A taquara, ainda verde, para o corpo, é buscada, gratuitamente, nos campos ou às margens dos ribeirões. A cabeça, legítima, de osso, é procurada nos sítios ou comprada por apenas cinco reais – instala-se um comércio entre a garotada. Pano preto, branco, azulado ou colorido, para a cobertura, é tirado do baú. Tudo serve: um velho lençol, uma colcha puída, uma cortina descorada, panos abandonados nas gavetas. E o couro fica pronto num piscar de olhos.
Pinta-se-lhe a cabeça com tinta preta ou branca, para contrastar com a cor do corpo. Nos chifres desgastados colocam-se cones pontiagudos.
Alguns bois mais sofisticados ostentam luzes vermelhas nos olhos, que piscam cor de brasa, e luzes claras nos chifres a indicar o perigo das aguilhoadas.
Pronto o animal, é só dar-lhe vida – penetrar-lhe na entranha e sair pelas ruas, em perseguição à criançada. Inicia-se a coreografia – bois que dançam, investem, recuam. Gritaria. Algazarra. Corre-corre. Tropeções e tombos. Bois e crianças num emaranhado de pernas e braços. Mas ninguém sai machucado.
Às vezes, um boi perde o equilíbrio e cai, sua cauda violentamente puxada por um menino destemido. No chão ele fica, estatelado, por alguns minutos, rodeado de gritos, vaias e risadas. Ei-lo, de repente, em pé, para novas investidas. Alguns, cansados, sentam-se nas calçadas, para reabastecer-se de forças e reiniciar a brincadeira.
Às janelas, crianças pequeninas contemplam, curiosas e cheias de medo, o espetáculo, como se os bois fossem de verdade, ameaça para os seus verdolengos anos. Portões e portas fechados, para se evitar possível invasão nas salas e jardins.
Tudo termina, noite avançada, pés empoeirados, frontes coroadas de suor. E a cena repete-se nas ruas do sono, o menininho ou a menininha a vislumbrar o boi da cara preta a forçar portas e janelas.
Por vezes, o boi é tão grande que são necessárias duas pessoas para fazê-lo caminhar. Então parece real, com quatro patas. E o seu gingado é mais musical. Assim eram os bois feitos aqui em Piquete, há muitos anos, pelo Olavo Pinho e o Ledo Moreira de Andrade. Imensos, confeccionados com esmero, eram a alegria do Carnaval. Esperados com ansiedade. Valia a pena sair de casa, à noite, para admirá-los. Carnaval sem os bois do Pinho e do Ledo não era Carnaval.
Cita o Sr. Carlos Vieira, numa crônica, um fato pitoresco associado ao boi do Pinho. Este, a fim de um descanso, solicitou a um companheiro que o substituísse dentro do animal. Chegaram em frente a um armazém, onde pararam para algumas “talagadas de pinga”. Todos entraram, exceto o boi. Depois de dez minutos, o substituto do Olavo Pinho, inconformado com o calor e a demora, jogou a armação para um lado e, chegando à porta da venda, berrou: “Como é, minha gente! Será que boi não bebe?” Isto aconteceu na década de cinquenta.
Por aqui há bois para todos os gostos: pequenos, médios e grandes, brancos, pretos, marrons, azulados e malhados. Há, também, bois surrealistas, semelhantes a um jardim, o couro recamado de flores coloridas.
Comum a presença de bois mirins: o corpo – um cabo de vassoura, a cabeça – uma pequena lata de óleo, os chifres – dois tocos de madeira, o couro – um pano qualquer, o rabo – uma tira ou um pedaço de corda. E lá vai o meninote a mugir, a correr de um lado para o outro, boi bravo a perseguir a garotada da vizinhança.
Não satisfeitos com ruas e praças, muitos bois vão para a avenida, onde saracoteiam ao som das baterias. E lá exibem, com destreza, suas artimanhas, à luz dos holofotes e os aplausos da multidão.
Findo o Carnaval, aposenta-se o boi, por um ano. Lá vai ele para o curral doméstico: o animal folião num quarto de despejo ou num ranchinho do quintal, a ruminar o silêncio e o ostracismo. É preciso que ele repouse, cansado de tantas peripécias.
Não se sabe quando o boi surgiu no nosso Carnaval de Piquete. Sua raiz mais remota, segundo Câmara Cascudo, está na Península Ibérica, onde os “bois fingidos” desfilavam diante dos reis e dos nobres. Ele vem de muito tempo, da época do entrudo e dos limões-de-cheiro. Aqui chegou e ficou, revitalizado pelas tropas e boiadas que desciam a Mantiqueira e atravessavam a cidade, na busca de Lorena e Guaratinguetá.
Que eles continuem entre nós, cada ano mais numerosos, a pastar nos campos da folia, com sua magia mítica, para encanto das crianças.
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