Carlos Vieira Soares, nascido em 22 de maio 1915, escreveu, em 1959, um relato sobre os dias da Revolução Constitucionalista de 1932 em Piquete. Telefonista da Fábrica de Pólvoras de Piquete, não deixou a cidade durante os três meses de conflito e vivenciou os fatos.
A crônica foi publicada originalmente em 15 de agosto daquele ano, no jornal “O Regente” e no livro “Rememorando…”, lançado pelo autor em 2002.
Neste Julho de 2022, quando a Revolução Constitucionalista completa 90 anos, a Fundação Christiano Rosa celebra tão importante data para os paulistas e para o estado de São Paulo com uma homenagem a este personagem singular de nossa cidade, Carlos Vieira Soares.
Piquete nos dias da Revolução de 1932
A vida em Piquete, no ano de 1932, era simples e pacata com as de todas as pequenas cidades, onde todos falam mal de uma pessoa, mas todos vão visita-las quando adoece.
O 11 de julho daquele ano caiu numa segunda-feira. Sabíamos que em São Paulo, na antevéspera, havia “estourado” uma revolução. Sabíamos disso pelos poucos jornais confirmados pela prontidão do Contingente da Fábrica, pois não havia na cidade um único aparelho de rádio receptor.
Ali pelas dezesseis horas, um ruído estranho se fez ouvir. Parecia o zumbido de uma mamangava ou de um besourão. Que seria? O tal ruído foi aumentando de intensidade até que alguém o descobriu. Era um aeroplano que já estava em cima da cidade, o primeiro avião que cruzava os céus virgens de nossa terra.
Corriam uns para vê-lo, outros para não o ver. Conta-se que um tal Ananias, mineiro de Borda da Mata, ajoelhou-se e, de mãos postas, pedia perdão a Deus dizendo: “Castigo! Isso é castigo” Nunca ouvi dizer que Santa Cruz ‘voasse’”. Conta-se, ainda, que outro, de medo, passou três dias entocado nas matas vizinhas.
Foi um reboliço. Dessa hora tudo mudou, mesmo porque logo chegava a primeira tropa para “tomar” a Fábrica. Era uma companhia do 6º RI comandada por um tenente que vinha ocupar a cidade. Desembarcou na Estação da Estrela e o tal tenente prendeu, sob palavra, toda a oficialidade. À noite, outras tropas foram chegando e isso durante toda a semana. Tropas regulares e “pátria-amadas”, cujo fim exclusivo – parecia-nos – era comer nossas penosas e namoricar nossas mocinhas.
Houve um movimento de retirada dos moradores da cidade. Algumas famílias chegaram a procurar na zona rural a segurança que supunham perdida, movimento esse que foi logo enfraquecido por terem os paulistas se mostrado gentis e cavalheirescos com todos.
Soldados por toda parte. Da vila de São José ao Poço Fundo só se via farda amarela. Tocando violão, em grupos, jogando damas ou truco, eles se espalhavam pelas calçadas e meio de ruas. O Q.G. era no hotel de D. Maria Eufrásia. Postos de Comando no grupo escolar, cinema, cadeia e outros lugares. Nada de tiros… Nada de combates…
Sábado, dia 16, ouvimos um toque de reunir em acelerado. É que um funcionário da telefônica descera a serra de Minas com a notícia de que os mineiros já estavam aqui perto, na Tabuleta.
Os ditatoriais, aproveitando-se da “boa vida” dos nossos soldados, estavam, de fato, bem próximos.
Enquanto os revoltosos procuravam desalojar os ditatoriais, assestando suas baterias em diversos pontos como no Alto da Caixa D’água, Alto do Carioca e outros lugares, a população alarmada abandonava a cidade abandonava a cidade. Viam-se pelos caminhos do Santo Cruzeiro, do morro das Baias e do Itabaquara filas sem fim de pessoas arcadas com o peso das trouxas de roupa e de trens de cozinha, pescoceando os filhos para andarem mais depressa.
Os poucos mais corajosos que ficaram – e nós entre eles – puderam ver o trabalho dos paulistas para fazer recuar os inimigos ate o alto da Serra. E lá, bem longe, continuou o combate. Uma vez ou outra, perdida, uma bala de canhão 75 vinha espantar a gente. As metralhadoras pipocavam nas grotas, porém feridos e mortos não chegamos a ver. Diziam que os cadáveres e feridos só eram deslocados à noite para São Paulo. Para falar a verdade, o único morto que vimos foi um soldado que estourou o tampo da cabeça por ter brigado com a namorada.
Aos poucos fomos nos acostumando com a situação e também nos entusiasmando com o movimento constitucionalista. Já falávamos em organizar um batalhão de voluntários para, a exemplo do que acontecera em 1930, “amarrar” nossos cavalos no “obelisco”.
Muito boato e muito “peixe”. Diziam que em Itapira, Itararé, Vila Queimada e Eleutério estavam fazendo o inimigo “comer brasa”. Diziam que no túnel de Cruzeiro os mineiros corriam de uma matraca de madeira à guisa de metralhadora. Diziam que logo estaríamos no Catete para depor o caudilho.
Mas eis que, numa manobra que nós, paisanos, não pudemos entender, houve a ordem para a retirada. Iam abandonar a praça… Iam deixar a cidade à mercê de sua sorte.
Todo mundo queria ir para São Paulo, uns abrigados pelos deveres funcionais, outros porque já estavam em comunhão com a causa, a maioria por medo.
Piquete ficou com poucas famílias. Nós, que a contragosto não pudemos acompanhar os retirantes, vimos chegar os invasores. Primeiramente uns cavalarianos que entraram passo a passo, desconfiados. Era um piquete de reconhecimento. Depois o 19º B.C. ocupou a cidade abandonada. Por mais que nos esforçássemos, não poderíamos simpatizar com eles. Desconhecíamos nos invasores os nossos irmãos, filhos da Pátria comum, e eles, por sua vez, não nos ajudavam a pensar de outra maneira, pois mal encarados, atrevidos até, faziam questão de nos amesquinhar e de fazer prevalecer a força de que dispunham.
A situação mudou completamente. Antes tínhamos de tudo. Os postos de reabastecimento do M.M.D.C. nos supriam com abundância, pois, além dos gêneros de primeira necessidade, frutas, doces, cigarros e agasalhos eram distribuídos à população. Agora, o pouco de que dispúnhamos era requisitado. As casas abandonadas eram saqueadas, tendo mesmo havido um caso de incêndio depois da pilhagem.
Tudo isso nos revoltava, mas nada podíamos fazer. Vae Victis! Sim… Ai dos vencidos! Era a lei da guerra que se fazia sentir.
Durou pouco, felizmente, essa situação. São Paulo capitulara e, como não havia mais razão de sua permanência, os invasores nos deixaram.
Com o término da Revolução, começaram a chegar os retirantes que, durante vinte e dois dias em São Paulo, não podiam mandar quaisquer notícias. Quantas lágrimas de saudade! Quanto desespero! Quanta angústia!
Iniciou-se, então, um outro capítulo cruciante. Um tribunal militar instalado para apurar a responsabilidade dos “revoltosos” locais funcionava à base do livre arbítrio. Não havia oportunidade de defesa e, por isso, muitos chefes de família foram demitidos sumariamente. O que mais nos entristecia era ver nossos companheiros “dedarem” seus colegas para se livrar de culpas. Com isso muita mágoa ficou e só com o passar do tempo Piquete pode voltar a ser aquela cidadezinha igual a muitas outras cidades, onde todo mundo fala mal de uma pessoa, mas que todo mundo vai visitá-la quando adoece.
Carlos Vieira Soares, in “Rememorando…”, 2002,
(Publicado em “O Regente”, em 15-08-1959)
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