o Dia de Finados em Piquete, SP
A origem do cemitério de Piquete, SP
Com a construção da Capela de São Miguel, no bairro lorenense de Piquete, na segunda metade do século 19, e sua elevação à categoria de freguesia através da Lei Provincial n° 10, de 22 de março de 1875, as lideranças políticas locais passaram a discutir com maior vigor os problemas da comunidade. Visavam à sua emancipação. Uma das questões que muito afligia os moradores do bairro dizia respeito a mortes e sepultamentos. Como não havia um cemitério no Piquete, toda vez que alguém morria era uma dificuldade transladar o defunto até Lorena, para ser sepultado. Para os grandes proprietários de terra que possuíam casa na sede da comarca, era lá que acabavam morrendo; não havia, portanto, maiores problemas. Os comerciantes e pessoas com posses contavam com grande número de parentes, amigos ou algum escravo, mas os pobres e desvalidos frequentemente iam bater à porta de algum fazendeiro ou proprietário de escravos rogando empréstimo para pagar o funeral. Esses pedidos certamente não eram recebidos de bom grado; e com o aumento populacional do bairro, o descontentamento aumentou ainda mais. A questão acabou chegando à Câmara de Lorena que, por essa época, era presidida pelo Dr. Antônio Rodrigues de Azevedo Ferreira, eminente político provincial e proprietário da Fazenda Santa Eulália, grande produtora de café, localizada em Piquete, onde hoje se encontra o bairro da Vila Esperança. Numa sessão da Câmara, o Dr. Rodrigues justificava a criação de um cemitério na Freguesia do Piquete dizendo da sua importância para a população e mencionando que os defuntos precisavam ser conduzidos numa distância de mais de 4 léguas e os fazendeiros eram “constantemente incomodados pelos pobres para fornecer escravos que conduzissem os corpos de tais distâncias até a cidade de Lorena, o que acarretava prejuízos nos trabalhos da lavoura e dava margem a desordens, pois os escravos voltavam quase sempre embriagados ou ficavam ausentes por mais de um dia, em detrimento da disciplina.”
Aprovada pela edilidade lorenense a criação do cemitério no Piquete, foi constituída uma comissão para escolher um local adequado para tal mister. O tenente José Mariano Ribeiro da Silva, que, anos antes, já havia doado o terreno para a construção da Capela de São Miguel, ofereceu o terreno para a necrópole. Na sessão ordinária de 18 de junho de 1875, a comissão aceitou a doação e já apresentou o orçamento de 500mil réis para a construção. Tudo aprovado, foi posto em concorrência pública.
Decorridos 4 meses, na sessão de 16 de outubro, a Câmara lorenense, sob a presidência do Dr. Rodrigues de Azevedo, recebeu “uma proposta do Alferes Paulino Rodrigues Monteiro, oferecendo-se para mandar fazer o cemitério do Piquete, de conformidade com o plano apresentado, pela quantia de 700 mil réis, e apresentando para seu fiador o Tenente José Pereira Ramos. Não havendo outra proposta e declarando os avaliadores que a quantia de 500 mil réis em que orçaram não compreendia o plano das obras publicadas, deliberava a mesma Câmara aceitar a proposta supra, autorizando o presidente a assinar o contrato, podendo adiantar alguma quantia se assim exigir o contratante.” As obras tiveram início de imediato. Cercado com um muro de taipa, com um portão de acesso, localizava-se atrás da Capela de São Miguel. Por ironia do destino, o Tenente José Mariano, que havia doado o terreno e se empenhado na construção da Capela de São Miguel, bem como na do cemitério, sepultou em 11 de dezembro de 1881 sua esposa Emiliana Esperança da Glória, mãe de Carlos Ribeiro, Maria Eufrásia, Augusto Ribeiro e José Mariano Ribeiro da Silva Júnior. O Tenente José Mariano foi o grande propugnador dos trabalhos que levaram à emancipação político-administrativa de Piquete e um nome que deverá sempre ser lembrado.
Dado pitoresco referente aos sepultamentos daqueles tempos diz respeito ao fato de que não havia caixões para transportar os defuntos. O morto ia de Piquete a Lorena numa rede amarrada numa vara carregada nos ombros por pessoas que se revezavam. Contam que para aliviar o peso do morto, era costume, quando paravam numa aguada para descansar, molhar a rede por baixo. Outros dizem que também se cortava uma vara e se batia no defunto para que ele ficasse mais leve. Mas essa já é uma outra história…
Antônio Carlos Monteiro Chaves
Edição 154, de novembro de 2009, do informativo O ESTAFETA
O dia de Finados
Assim como outras datas são importantes para nossas vidas, o dia 2 de novembro, mais conhecido como dia de Finados, também tem sua relevância, pois foi criado em homenagem às pessoas falecidas.
Segundo estudiosos, no início da história da Igreja os cristãos rejeitavam a ideia de relacionamento com os mortos. Nessa época os mesmos acreditavam que as almas simplesmente ficavam adormecidas até o momento do juízo final. Com a difusão do cristianismo, a religião anexou certos aspectos de outras culturas. Assim, da mesma forma que faziam diversos povos da Antiguidade, os cristãos passaram a venerar os mortos visitando os túmulos dos mártires para rezar. Já a partir do século V foi adotada pela Igreja a data que, de acordo com a tradição, seria dedicada à lembrança dos que partiram.
A escolha de 2 de novembro para esta comemoração, segundo historiadores, não foi por acaso. Um dia antes, no dia 1º, é celebrado o “Dia de Todos os Santos”. Na ocasião é prestada homenagem a todos que morreram em estado de graça, mas não receberam canonização. Já no dia 2, é momento de relembrar nossos entes queridos, que não morreram em estado de graça total e que se encontram em estado de purificação.
No cristianismo o Finados ganharia outra conotação: a data seria conhecida como “a lembrança dos fiéis defuntos”. A diferença está na origem dos termos: Finados em sua origem indica aquele que finou, ou seja, que partiu. Por sua vez, o termo defunto tem origem na palavra “defungor”. Em outras palavras, aquele que cumpriu plenamente sua missão. O Dia dos Fiéis Defuntos, segundo a Igreja, é a data para celebrar o cumprimento da missão das pessoas que já faleceram e, ainda, com uma chance, através da oração, para que a alma desta pessoa possa descansar junto ao Criador.
Para os católicos, o dia é celebrado com muitas orações e com a presença de velas em diversos ambientes da casa. Na data, muitas famílias evitam ligar o rádio ou mesmo a televisão. Diferentemente de outros países, no México, ao invés de melancolia, os mortos são homenageados com grandes festas. No dia de Finados são preparados verdadeiros banquetes nas casas das pessoas. Isso faz com que o país receba turistas de todo o mundo. Diz a lenda que, neste período, Deus permite que os mortos voltem à terra e, dessa forma, reencontrem seus parentes.
Existem alguns símbolos que são muito utilizados no dia dos mortos, para homenageá-los: os crisântemos representam o sol e a chuva, a vida e a morte e, por serem flores mais resistentes, são muito usadas nos velórios. As velas significam a luz do falecido, as coisas boas que deixou para seus parentes. Muitas vezes, no dia de Finados, o tempo fica nublado ou chuvoso. As crenças populares dizem que isso acontece porque lágrimas são derramadas dos céus…
Legenda: O dia de Finados é momento de relembrar os entes queridos, que não morreram em estado de graça total e que se encontram em estado de purificação.
Antônio Carlos Monteiro Chaves
Edição 177, de outubro de 2011, do informativo O ESTAFETA
Nós que aqui estamos por vós esperamos
À entrada do cemitério da cidade de Paraibuna lê-se essa frase. Colocada no portal do cemitério, num primeiro momento confunde-nos. Imaginamos que os que lá estão esperam pela nossa morte e, em seguida, o óbvio, nosso enterro. Mas não é bem assim. O sentido é outro. Os que lá estão esperam por nossas orações. A inscrição do portal foi lá colocado por um padre, com a intenção de sensibilizar a população para que rezasse pelos mortos. Mesmo assim, após tanto tempo, não deixa de causar espanto e curiosidade aqueles que vão ao local pela primeira vez.
Cemitério é uma palavra de origem grega. Veio da palavra “koimeterion”, cujo significado na língua grega clássica é “dormitório”. Simbolicamente, uma alusão ao conceito de que a maioria dos templos das religiões ocidentais dava originariamente para o lugar onde se enterravam os mortos: o espaço sagrado onde se dorme o sono eterno.
Apesar de muitos terem uma relação impactante ou desconfortante com esse lugar, os cemitérios em diferentes cidades turísticas do mundo fazem parte do roteiro histórico de visitação, como, por exemplo, o Père-Lachaise, em Paris, na França, o Recoleta, em Buenos Aires, na Argentina, o da Consolação, aqui em São Paulo. Nesses locais, que ficaram conhecidos como “museus a céu aberto”, são identificados elementos que demonstram a história social e artística dessas cidades através da estatuária, das obras arquitetônicas, dos epitáfios e dos símbolos encontrados nos túmulos, valorizando e exaltando a preser-vação desse imenso patrimônio público. Os cemitérios são ricas fontes de pesquisa. Podem nos dar valiosas informações, sendo eles fontes históricas para a preservação da memória familiar e coletiva, fonte de estudo das crenças religiosas, forma de expressão do gosto artístico, forma de expressão da ideologia política, forma de preservação do patrimônio histórico e fonte para estudo da genealogia. Essas informações são obtidas por meio da análise de epitáfios, de fotos tumulares, das simbologias contidas nas obras funerárias e das formas artísticas dos monumentos e mausoléus.
Além da aparência triste e da sensação de paz presente nos cemitérios, há um precioso universo cultural que se esconde por trás dos cemitérios.
Antônio Carlos Monteiro Chaves
Edição 177, de outubro de 2011, do informativo O ESTAFETA
A Dama de Branco
Adentrando-se o cemitério de Piquete, pode-se ver, logo à direita, a quadra mais antiga: túmulos de mármore com anjos e santos, alguns já carcomidos pelo tempo, manchas negras e esverdeadas, lápides trincadas. Lá repousam os antepassados de nossa cidade – políticos, fazendeiros e comerciantes -, orgulhosos que eram das riquezas, dos títulos e das cepas familiares. O mais famoso dos túmulos apresenta a figura de uma mulher descalça, de joelhos, comprido manto branco de ourela rendilhada, a mão esquerda a apoiar a fronte e a direita a segurar delicadamente uma coroa de flores. Comovente alegoria da Saudade.
No dia de Finados os visitantes detêm-se diante dele e comentam ser a sepultura de uma mulher que morreu nos Estados Unidos, vítima de fortíssima dor-de-cabeça.
Realmente ela morreu nos Estados Unidos. Chamava-se Odila Bittencourt da Fonseca, piquetense, nascida na Fazenda Estrela do Norte, atual Vila Militar, no dia 11 de março de 1890 e falecida em Washington, a 24 de setembro de 1914. Era filha do Major Carlos Augusto Alvim Taques Bittencourt, primeiro prefeito de Piquete, e de Dona Maria Domiciana Vieira Bittencourt, filha do Comendador Custódio José Vieira da Silva, integrante da 1a Intendência de Piquete.
As fotografias de Odila revelam uma mulher bonita, morena clara, cabelos longos, rosto simpático. Sua beleza, elegância e educação esmerada comoveram o engenheiro militar Tenente Antônio José da Fonseca, que viera trabalhar na construção da Fábrica de Pólvora Sem Fumaça. E as bodas se realizaram com festas e muitos convidados.
Designado o nosso engenheiro para adido militar junto à Embaixada Brasileira, em Washington, deveria o casal partir, sem delongas. Segundo pessoas ligadas à família do Sr. Custódio Vieira Bittencourt, irmão de Odila, esta, enquanto cuidava dos preparativos para a viagem, assim se expressava – “Eu vou, mas sei que não volto.” Para não contrariá-la o esposo estava decidido a não deixar o Brasil, mas ela o convenceu a cumprir sua missão. E lá foram os dois, acompanhados dos filhinhos Carlos Eugênio, José Eugênio e Maria de Lourdes, para nova aventura de vida.
Comentam que lá na nova terra a nossa piquetense participou de um concurso de beleza, apenas ela casada, obtendo o primeiro lugar, alvo de elogios da imprensa local. Foi-lhe ofertado, dizem, um artístico buquê de flores, que muito a encantou, cujo perfume inebriante, várias vezes aspirado, provocou-lhe forte dor-de-cabeça, que foi se intensificando até levá-la à morte. Voz popular que talvez as flores estivessem impregnadas de poderes mágicos maléficos, frutos da inveja e do despeito.
Seu corpo, embalsamado, foi trazido para o Brasil num navio de guerra, e chegou à nossa cidade no “trenzinho dos operários”, acordes de marchas fúnebres, a noite iluminada de tochas, pois aqui ainda não havia luz elétrica. O cortejo luminoso dirigiu-se para a matriz de São Miguel, onde aconteceu o velório, com a presença do povo, de autoridades, militares, fazendeiros e comerciantes. Soube que foi tudo muito solene: as mulheres, de vestidos longos, cores discretas e mantilhas nas cabeças; os homens, de preto, ternos de casemira inglesa, as botinas reluzentes, acompanhados de negros e mulatos remanescentes das senzalas das fazendas-de- café.
A partir de então, pessoas que sofriam de contumazes dores-de-cabeça começaram a pedir a intercessão de Odila, acendendo velas ou colocando bilhetes sobre sua sepultura. Vinha gente até das cidades vizinhas, flores nas mãos e promessas guardadas nos corações. Era preciso tocar a lápide e passar carinhosamente os dedos no nome gravado na brancura do mármore.
Na realidade, Odila Bittencourt não morreu de dor-de-cabeça, mas de peritonite, conforme sua filha Maria de Lourdes Bittencourt da Fonseca, quase nonagenária, residente na cidade de São Paulo. Talvez o imaginário popular tenha associado a figura da mulher de branco, com a mão esquerda a apoiar a fronte, a uma pessoa acometida de violenta dor-de-cabeça.
Quando criança, eu via, no Finados, o túmulo recamado de flores – flores belas e sofisticadas, vindas de São Paulo, tão diferentes das cultivadas nos nossos quintais e pobres jardinzinhos piquetenses. Era uma orgia de cores e perfumes a derramar-se dos vasos levemente azulados.
Com o passar do tempo, muitos familiares de Odila morreram, outros se dispersaram e não mais voltaram. Hoje, no dia dos mortos, apenas uma mulher tinge o túmulo de flores – Dona Maria Geralda Cláudio, que morou muitos anos com Dona Elisa Ribeiro da Silva, tia da nossa heroína. Seus gestos são manifestações de carinho por uma família que sempre lhe deu acolhida e amor.
Nas noites de luar, o túmulo alveja no silêncio, ao lado de uma palmeira solitária, e nos remete a um momento da história de Piquete, em que a jovem Odila, com sua beleza e faceirice, suas jóias e vestidos longos e drapeados dava um toque de elegância às festas da antiga Fazenda Estrela do Norte.
Crônica de Chico Máximo (Francisco Máximo Ferreira Netto), originalmente publicada no informativo O ESTAFETA e posteriormente no livro “Crônicas de Cidadezinha”, de 2005.
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