A Dama de Branco
Adentrando-se o cemitério de Piquete, pode-se ver, logo à direita, a quadra mais antiga: túmulos de mármore com anjos e santos, alguns já carcomidos pelo tempo, manchas negras e esverdeadas, lápides trincadas. Lá repousam os antepassados de nossa cidade – políticos, fazendeiros e comerciantes -, orgulhosos que eram das riquezas, dos títulos e das cepas familiares. O mais famoso dos túmulos apresenta a figura de uma mulher descalça, de joelhos, comprido manto branco de ourela rendilhada, a mão esquerda a apoiar a fronte e a direita a segurar delicadamente uma coroa de flores. Comovente alegoria da Saudade.
No dia de Finados os visitantes detêm-se diante dele e comentam ser a sepultura de uma mulher que morreu nos Estados Unidos, vítima de fortíssima dor-de-cabeça.
Realmente ela morreu nos Estados Unidos. Chamava-se Odila Bittencourt da Fonseca, piquetense, nascida na Fazenda Estrela do Norte, atual Vila Militar, no dia 11 de março de 1890 e falecida em Washington, a 24 de setembro de 1914. Era filha do Major Carlos Augusto Alvim Taques Bittencourt, primeiro prefeito de Piquete, e de Dona Maria Domiciana Vieira Bittencourt, filha do Comendador Custódio José Vieira da Silva, integrante da 1a Intendência de Piquete.
As fotografias de Odila revelam uma mulher bonita, morena clara, cabelos longos, rosto simpático. Sua beleza, elegância e educação esmerada comoveram o engenheiro militar Tenente Antônio José da Fonseca, que viera trabalhar na construção da Fábrica de Pólvora Sem Fumaça. E as bodas se realizaram com festas e muitos convidados.
Designado o nosso engenheiro para adido militar junto à Embaixada Brasileira, em Washington, deveria o casal partir, sem delongas. Segundo pessoas ligadas à família do Sr. Custódio Vieira Bittencourt, irmão de Odila, esta, enquanto cuidava dos preparativos para a viagem, assim se expressava – “Eu vou, mas sei que não volto.” Para não contrariá-la o esposo estava decidido a não deixar o Brasil, mas ela o convenceu a cumprir sua missão. E lá foram os dois, acompanhados dos filhinhos Carlos Eugênio, José Eugênio e Maria de Lourdes, para nova aventura de vida.
Comentam que lá na nova terra a nossa piquetense participou de um concurso de beleza, apenas ela casada, obtendo o primeiro lugar, alvo de elogios da imprensa local. Foi-lhe ofertado, dizem, um artístico buquê de flores, que muito a encantou, cujo perfume inebriante, várias vezes aspirado, provocou-lhe forte dor-de-cabeça, que foi se intensificando até levá-la à morte. Voz popular que talvez as flores estivessem impregnadas de poderes mágicos maléficos, frutos da inveja e do despeito.
Seu corpo, embalsamado, foi trazido para o Brasil num navio de guerra, e chegou à nossa cidade no “trenzinho dos operários”, acordes de marchas fúnebres, a noite iluminada de tochas, pois aqui ainda não havia luz elétrica. O cortejo luminoso dirigiu-se para a matriz de São Miguel, onde aconteceu o velório, com a presença do povo, de autoridades, militares, fazendeiros e comerciantes. Soube que foi tudo muito solene: as mulheres, de vestidos longos, cores discretas e mantilhas nas cabeças; os homens, de preto, ternos de casemira inglesa, as botinas reluzentes, acompanhados de negros e mulatos remanescentes das senzalas das fazendas-de- café.
A partir de então, pessoas que sofriam de contumazes dores-de-cabeça começaram a pedir a intercessão de Odila, acendendo velas ou colocando bilhetes sobre sua sepultura. Vinha gente até das cidades vizinhas, flores nas mãos e promessas guardadas nos corações. Era preciso tocar a lápide e passar carinhosamente os dedos no nome gravado na brancura do mármore.
Na realidade, Odila Bittencourt não morreu de dor-de-cabeça, mas de peritonite, conforme sua filha Maria de Lourdes Bittencourt da Fonseca, quase nonagenária, residente na cidade de São Paulo. Talvez o imaginário popular tenha associado a figura da mulher de branco, com a mão esquerda a apoiar a fronte, a uma pessoa acometida de violenta dor-de-cabeça.
Quando criança, eu via, no Finados, o túmulo recamado de flores – flores belas e sofisticadas, vindas de São Paulo, tão diferentes das cultivadas nos nossos quintais e pobres jardinzinhos piquetenses. Era uma orgia de cores e perfumes a derramar-se dos vasos levemente azulados.
Com o passar do tempo, muitos familiares de Odila morreram, outros se dispersaram e não mais voltaram. Hoje, no dia dos mortos, apenas uma mulher tinge o túmulo de flores – Dona Maria Geralda Cláudio, que morou muitos anos com Dona Elisa Ribeiro da Silva, tia da nossa heroína. Seus gestos são manifestações de carinho por uma família que sempre lhe deu acolhida e amor.
Nas noites de luar, o túmulo alveja no silêncio, ao lado de uma palmeira solitária, e nos remete a um momento da história de Piquete, em que a jovem Odila, com sua beleza e faceirice, suas jóias e vestidos longos e drapeados dava um toque de elegância às festas da antiga Fazenda Estrela do Norte.
Francisco Máximo Ferreira Netto
Publicado originalmente no informativo O ESTAFETA, edição 22, de novembro de 1998.
Odilla Bittencourt, um mito piquetense
Uma história de amor daquelas ainda hoje sonhadas por muitos jovens românticos e apaixonados teve como protagonistas Odila Vieira Bittencourt e Antônio José da Fonseca e como cenário a pacata Vila Vieira do Piquete.
A história foi vivida de maneira intensa e surpreendente. Seu desfecho, no entanto, foi trágico.
Tudo começou com a chegada da comissão construtora da Fábrica de Pólvora sem Fumaça a Piquete, em julho de 1905. Essa comissão se instalou na sede da antiga Fazenda Estrela do Norte, local onde Odila Bittencourt havia nascido em 11 de março de 1890, e que a família vendera, juntamente com outras propriedades, para a construção da Fábrica. Dessa comissão fazia parte o engenheiro militar Antônio José da Fonseca, tenente responsável pela construção da vila em que iria residir a oficialidade e os mestres dessa fábrica – a Vila da Estrela.
Foi com a chegada da comissão construtora que Odila e Antônio se conheceram. Ela era a filha mais velha do casal Carlos Augusto Taques Bittencourt, primeiro prefeito de Piquete, e Maria Domiciana Vieira Bittencourt. Era neta, por parte de mãe, do Comendador Custódio Vieira da Silva, e, por parte do pai, do Major Pedro Taques Bittencourt. Do flerte ao namoro e noivado, foi um passo… O casamento se deu num oratório particular, em Lorena, às 19h do dia 6 de outubro de 1906. Apadrinharam a cerimônia, por parte da noiva, o Dr. Eugênio Borges, e o major Porphírio José Monteiro, e, por parte do noivo, o coronel Augusto Maria Sisson, chefe da comissão construtora da Fábrica, e o engenheiro militar, tenente Mário Alves Ferreira. Ao término da cerimônia, os nubentes e convidados seguiram num trem especial para a Vila do Piquete, onde teve lugar memorável recepção. O casal foi residir numa casa de sonhos construída por Antônio Fonseca, na Vila da Estrela e teve três filhos. Tudo corria à mil maravilhas… A bela e elegante Odila era considerada a “primeira dama” da Vila, uma vez que ali havia nascido… No dia 15 de maio de 1913 chegou a notícia de que Antônio José da Fonseca, já capitão, havia sido nomeado adido militar da delegação do Brasil nos Estados Unidos. Tiveram pouco tempo para arrumar as malas e partiram de imediato…
A menina simples, criada numa fazenda de café de uma pacata vila, mudava-se para a então capital do mundo… A viagem e a adaptação ao estilo de vida americano ocorreram sem entraves, apesar da saudade demonstrada por Odila em várias cartas encaminhadas à amiga Lili Couto, que residia no Hotel das Palmeiras, em Piquete. Os compromissos, tanto em casa quanto os da representação diplomática, ocupavam o dia a dia do casal. Para ajudar no cuidado das crianças, Maria do Carmo Bittencourt, irmã mais nova de Odila, acompanhou o casal. A educação e o carisma que conquistaram Piquete deram destaque à jovem Odila também nos salões da capital americana. Em Piquete, Odila era referência para muitas jovens. Todos torciam pela felicidade do casal…
Tudo corria bem até que o infausto aconteceu… A notícia pegou os piquetenses de surpresa. De maneira súbita, Odila falecera em Washington, em 24 de setembro de 1914. Piquete cobriu-se de luto e se preparou para sepultar a ilustre cidadã. No dia 12 de novembro atracava no cais do Rio de Janeiro o paquete Minas Gerais. Trazia o corpo embalsamado de Odila Bittencourt da Fonseca, o viúvo Antônio José, os três filhos e a irmã Carminha. Subiu a bordo para recebe-los uma comissão de oficiais da Fábrica de Pólvora sem Fumaça, tendo à frente seu diretor, Aquilles Veloso Pederneiras, e seus tios – os capitães Boaventura Barcellos Garcia e Benevenuto Bittencourt e o major Carlos Ribeiro. Também estiveram presentes os mestres da Fábrica, Kantionilho Pauferro e Jarbas Araújo. O féretro foi transportado em um carro fúnebre ligado ao trem noturno paulista. Aguardavam o corpo na estação de Lorena, na madrugada de 13 de novembro, grande número de parentes e amigos, que o acompanharam até a matriz de Piquete. O corpo repousava em rico caixão forrado de camurça cinza, com uma placa de prata onde se liam o nome e as datas do nascimento e morte. Preso à altura dos pés, um crucifixo de prata. O caixão repousou sobre rica essa, na qual se viam inúmeras coroas com mensagens de saudade. Às 9h houve missa de corpo presente e, em seguida, o cortejo fúnebre seguiu para o cemitério de Piquete.
Este mês de novembro registra os cem anos dessa história de amor, iniciada na Fazenda da Estrela e tragicamente interrompida em Washington, nos EUA.
Quem visita o cemitério de Piquete, ao adentrá-lo depara, à direita, com um túmulo encimado por uma escultura de mulher ajoelhada, com uma das mãos apoiando a cabeça e a outra segurando uma coroa de flores. Essa “Alegoria da Saudade”, carinhosamente conhecida na cidade como “A Dama de Branco”, marca o local onde, há um século, está sepultada Odila Bittencourt da Fonseca.
Antônio Carlos Monteiro Chaves
Texto publicado originalmente no informativo O ESTAFETA, edição 214, de Novembro de 2014.
A meditação de Odila
Novembro começa com uma rememoração. Após Todos os Santos, os Finados. Hoje, estas referências esmaeceram nas memórias. Do feriado que restou entre os dois ficou a expectativa do lazer, do consumo, da possível conjugação a um fim-de-semana para a viagem antecipatória das festas de mais um fim de ano. Fruição encadeada ao 15 do mesmo mês, que, esvaziada de sua função histórica, é mais um dia de lazer para antecipar viagem mais longa ou projetos mais imediatos: conclusão de ano escolar, celebrações familiares e as férias de verão com promessas de sol, areia e água. Longe, ou o mais perto possível, na medida do bolso, ou da imaginação.
No novembro, 2, o cemitério é ainda, para muitos, visita obrigatória.
No de Piquete, Odila Bittencourt debruça-se sobre o tempo e dele faz seu mote, traduzido em bom mármore de boa lavra. Seus dedos finos elaboram, aos ventos e ao correr das horas, o tecido da memória.
Odila cercava-se no inicio do século passado de poucos vizinhos, pontuados em outros mármores ou granitos, em pedra, cal, ou apenas terra e pó – os restos de todos somados.
No início deste século, ela percebe, meditando sempre, a chegada de muitos novos, reforçando-lhe os laços memorizatórios. No lugar elevado de autoridade, concedido pela elite da qual era derivada, viu e vê passar os cortejos. Seu rosto liso mantém-se incólume, seu pó amalgamou-se aos demais. O véu que lhe cobre o rosto e o manto que lhe cobre o corpo resistem às procelas, pois eram mesmo esses os seus destinos. Em imagem figurada, ela dá sentido ao tempo.
Eternizada na pedra, Odila vê o cemitério se expandir e os túmulos vizinhos se altearem. A verticalidade das gavetas denuncia edifícios na necrópole iniciada antes da emancipação da vila, que via nascer e roteirizar o percurso de seus habitantes.
No repertório de Odila, o imaginário encontra os atributos que marcaram sua presença legitimada nos vizinhos que tem, e sabe que terá. Mas os mistérios da vida fazem de Odila uma guardiã incansável, pois se ela já decifrou no tempo o grande enigma, como portadora da chave, permanece enigmática em si mesma. Odila vigia, pois é da qualidade dela vigiar apenas, e meditar, pois emblematiza o que temos de mais indecifrável: a perenidade conjugada ao amplo vôo da liberdade do desejo da permanência.
Dóli de Castro Ferreira
Texto publicado originalmente no informativo O ESTAFETA, edição 58, de Novembro de 2001.
Odilla Bittencourt em fotografia tirada em Washington, DC, USA
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